sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Como o Transtorno de Personalidade Narcisista afeta os relacionamentos



Durante o período que  exerci jurisdição  em Varas de Família,  tive a oportunidade de tomar conhecimento  dos   vários tipos  de   relacionamentos familiares  disfuncionais,  os quais  eram muitas  vezes noticiados nos processos de Divórcio e  Dissolução de União Estável.  Em muitos deles, alguma das partes, cônjuge ou companheiro,  apresentava  comportamento com características  de personalidade narcisista e  nesses casos o rompimento da relação  era sempre traumático. Também era frequente a parte que tinha esse distúrbio usar os filhos como peças de barganha no fim do relacionamento.  Por isso,  muitas  vezes   havia a necessidade de um laudo psicossocial, quado o processo era encaminhado ao setor do Núcleo de Assessoria Psicossocial das Varas de Família ( NUAPSSOCIAL), onde  um laudo   era elaborado  para nortear as decisões proferidas nos autos.  

Lembro de um caso de dissolução de união estável  onde a parte autora  alegava que conviveu por  mais de  dez  anos  com o ex-companheiro (eles  já estavam separados  quando a  ação foi ajuizada)  e somente  decorrido esse  tempo ela descobriu  que  ele  era portador  de TPN (transtorno de personalidade narcisista),  quando em decorrência dos  abusos  sofridos nesse relacionamento,  teve de  fazer psicoterapia e soube através do seu psicoterapeuta que o ex-companheiro  tinha comportamento com características desse distúrbio de personalidade. 

Nesse caso ela  teve de buscar uma medida protetiva no Juízo de Violência Doméstica, pois  quando decidiu por fim ao relacionamento abusivo passou a  ser  vítima de "stalking" (perseguição reiterada a alguém) praticado pelo ex-companheiro, que não aceitava  ser  rejeitado. No processo eram  noticiados os abusos sofridos pela  requerente, cujo relacionamento deixou-a bastante traumatizada, passando a ter ansiedade e até  depressão. 

Percebendo que isso ocorria em vários processos, procurei pesquisar  sobre esse transtorno e descobri que ele é mais  comum do que eu imaginava,  no entanto não é muito estudado na psicologia, somente nos últimos anos  vem chamando mais a  atenção  dos psicoterapeutas. 

A psicanálise tem a mitologia como fonte de inspiração  no estudo da psique humana, tendo o mito como modelo na busca para a  compreensão dos processos  inconscientes. Portanto o arquétipo da  personalidade narcisista  é abordado  na mitologia grega. Diz o mito  que Narciso era um jovem caçador muito bonito. Um certo dia, ao se debruçar sobre um lago e ver a sua aparência pela primeira vez, ele ficou apaixonado pela própria imagem. Então  passou a  observar com muita frequência a imagem refletida  na  água, admirando a sua beleza sem saber que se tratava dele mesmo. Até que um certo dia tentou tocar na imagem, quando caiu no rio e  morreu afogado. 

Narciso ( pintura de Caravaggio ) 

O Transtorno de Personalidade Narcisista é uma desordem de personalidade. A preocupação em ser grandioso, o exibicionismo, sentimento de indiferença em relação ao outro, a ausência de empatia e a incapacidade de se relacionar de forma satisfatória,  são aspectos que definem o narcisismo, segundo Anna Karynne Melo, psicóloga, psicoterapeuta e professora da Universidade de Fortaleza. Ela  esclarece: “O narcisismo é  um transtorno que está no nível de desorganização da personalidade, que significa dizer que as funções do próprio eu estão comprometidas, ou seja, as funções de auto-observação”

Pesquisando sobre o assunto, descobri algumas das características do narcisista e  do  relacionamento com uma pessoa com esse transtorno, que listo a seguir:
 
  • Intensa auto concentração de  si mesmo  e  ego  inflado, com intesidade também  na autopromoção, arrogância, falta de  empatia; 
  • Busca incansável pelas próprias necessidades sem se preocupar com o  outro; 
  • Aparente  elevada autoestima, no entanto é somente aparência, pois na realidade  há muita insegurança, no fundo sente que  é uma  pessoa desprezível e por isso vive um falso  eu  ou "alter ego";
  • Dependência  de afeto e validação de seus atos pelo  outro (para manter o sentido de si mesmo) e, ao mesmo tempo, não se preocupa com a necessidade do outro; 
  • Sensação de direito e exigência de admiração constante e excessiva;
  • Exagero em  falar sobre suas  conquistas e talentos;
  • Intolerância a críticas, não aceitando  nenhum tipo,  nem a  crítica construtiva;
  • Dificuldade em pedir desculpas, sempre acha que está certo em tudo;
  • Julga-se merecedor de todo tipo de elogios, acha-se especial;
  • Prazer em depreciar e criticar a pessoa  que lhe fornece suprimento emocional, podendo tornar-se   um vampiro  de emoções; 
  • Ausência de consciência e falha de caráter, podendo  ser explorador financeiro da vítima do abuso, pois entende que a pessoa tem de retribuir/pagar  por se relacionar com uma pessoa tão especial quanto ele(a); 
  • Enorme capacidade de  manipulação,  pois  geralmente os narcisistas são charmosos, inteligentes  e encantadores, usando seu poder pessoal para envolver  e manipular  o outro; 
  • Procura realizar-se nos filhos, tendo estes  como extensão dele(a),  mostrando-os como um troféu a ser  exibido; 
  • Geralmente procura relacionamentos com pessoas que possibilite sua validação, gerando status e padrão social; 
  • Tem necessidade de  retratar os fatos conforme sua visão narcisista, onde muitas vezes utiliza mentiras para camuflar a  verdade,  numa visão distorcida da realidade;
  • Vê  o outro  como um objeto e não como uma pessoa,  onde o relacionamento  é considerado como uma "caçada", no qual o narcisista é  o  predador ; 
  • Não aceita ser desobedecido, exercendo um controle excessivo  sobre o outro;
  • Quando  percebe que  está perdendo o controle e não mais consegue manipular o outro, sente muita raiva e pode tornar-se  agressivo,  com ofensas verbais,  podendo também  cometer  agressão física. 
O narcisismo,  assim como o autismo, apresenta-se em espectro, portanto  há níveis de narcisismo e os  tipos mais comuns  são assim delineados: 

O narcisismo  grandioso, onde  a pessoa é extrovertida, exibicionista, arrogante, com enorme senso de superioridade,  aparentando  ser confiante e feliz (mas é só aparência, no fundo é inseguro e precisa de constante validação ).

O narcisismo vulnerável,  no qual o  portador  costuma ser  tímido, ansioso, tendência a baixa auto-estima e ao vitimismo,  no entanto usa isso para manipular  e  explorar o outro, buscando atenção constante e validação,  com exagerado  egocentrismo. 

Há ainda o narcisismo patológico,  o tipo mais grave que beira a psicopatia, no qual a pessoa é altamente manipuladora, super arrogante,  inflama  suas  conquistas fantasiando seu sucesso; costuma exigir atenção e  admiração excessivas, falta de empatia nas interações sociais e exploração do outro, inveja do sucesso alheio. 

Existe  também o tipo intermediário  entre o narcisismo grandioso e o patológico, quando a pessoa no decorrer da sua existência,  com a idade mais avançada,  vai  acentuando os traços e  características narcisistas. 

No entanto, apresentar alguns dos traços narcísicos não significa que uma pessoa tenha o transtorno,  pois algumas das características do narcisismo estão presentes em todos nós, o que significa que em algum  momento podemos ser egoístas, buscamos as nossas necessidades em primeiro plano e não conseguimos ficar atentos às necessidades do outro. Diferente disso, o transtorno é um conjunto de características disfuncionais que não depende de um contexto específico, ou de um momento, é um modo constante de funcionamento da personalidade do indivíduo. 

Dizem os especialistas que o narcisismo é um transtorno que não tem cura e pode até ficar mais acentuado na velhice. No entanto o  narcisista pode buscar tratamento ao ser diagnosticado, para aprender a lidar com seus gatilhos emocionais e a partir disso procurar ter relações mais saudáveis e  menos abusivas, sem causar tanto sofrimento ao outro.

Porém, dizem  os estudiosos no assunto,  que o(a)  narcisista dificilmente irá se identificar como uma pessoa com traços narcisistas. Ou seja, ele ou ela jamais irá admitir, salvo raras exceções, que  possui esse  transtorno de personalidade, pois quase sempre suas aspirações são desmedidas. Para a pessoa narcisista é normal e merecedor que seja o centro das atenções e faz tudo para isso. Para essa pessoa é ridículo tentar identificar-se como sendo narcisista por ser como  é,  pois se acha especial e merecedor(a)   de todos os elogios, aplausos e bajulações. 

Diante disso, relacionamentos   com   narcisistas  são muito traumáticos,  pois eles  são  ególatras, não são empáticos, pouco se ocupam com o outro e sempre estão preocupados com aquilo que é importante para eles  mesmos. Assim, para lidar com o narcisista é preciso ser muito empático e deixar claro a individualidade que cada um dos envolvidos tem, bem como impor limites. Conviver com alguém que tenha esse distúrbio de personalidade envolve muito cuidado e enorme sacrifício, pois o(a) narcisista se coloca como a pessoa mais importante da relação, exigindo que o outro sempre esteja ao seu dispor.

Os estudiosos  também enfatizam que o narcisista não  se  apresenta com suas caracterísitcas de personalidade disfuncional para todos, elegendo suas "vítimas", as quais  lhes dão o suprimento emocional que necessitam. Portanto, com as pessoas em geral os narcisistas não demonstram seu transtorno de personalidade, posto que possuem um "alter ego", usam máscaras nas relações sociais  e  podem até demonstrar simpatia,  pois geralmente  são  pessoas muito inteligentes e encantadoras. 

As "vítimas" em potencial  dos narcisitas, ou seja, as pessoas que  podem lhes  fornecer  suprimento emocional, geralmente  são sensíveis, empáticas e carentes,  apresentando dependência  emocional. Por isso  também necessitam de ajuda através de psicoterapia para  vencer  essa fragilidade emocional. 

Dizem ainda os estudiosos, que o narcisista quase  sempre  tem mais de uma pessoa para suprimento emocional, por isso a  tendência  de  triangulação nos seus  relacionamentos  amorosos. Ele (ou ela)   pode descartar e  colocar  a vítima  em  "stand by"  por algum  tempo,  porém voltando ao ciclo de  abuso  quando sente  necessidade,  convencendo a vítima  a retornar  a relação. Isso pode  perdurar por muitos  anos, com idas e vindas,  pois o(a)  narcisista quase  sempre coloca  a vítima  em sua " prateleira"  de suprimento  quando faz o "descarte"  e passa a buscar suprimento em outra pessoa. No entanto  o descarte não significa que  desistiu, a relação fica apenas suspensa,  podendo ser  reiniciada posteriormente, gerando um círculo vicioso. 

Em outra situação, quando é descartado(a)   pela vítima  que chega ao limite do abuso,  o/a narcisista nunca  acredita  no rompimento definitivo do relacionamento, pois se  considera insubstituível, ocasião em que espera  a  oportunidade  certa para novamente  retornar a relação, quando  o ciclo de  abuso  reinicia  cada  vez com mais intensidade. Por isso  é  tão  difícil o rompimento,  quando a relação  já se  tornou  tão  tóxica  ao ponto da vítima  ficar emocionalmente  dependente,  necessitando  de psicoterapia  para  a cura dessa dependência emocional. 

Não há um consenso entre os estudiosos  sobre  como é criada  a personalidade narcisista, sabendo-se apenas que esse distúrbio de personalidade disfuncional tem origem na infância, quando a personalidade da criança está sendo formada. Ou na adolescência, quando já formada a personalidade, porém o adolescente permanece com traços infantis por algum trauma, com personalidade mal formada.

Falta de limites na educação,  com excessiva permissividade  dos pais e elogios exagerados aos filhos, podem causar esse transtorno, caso exista uma tendência hereditária. Portanto  é  um somatório do meio e das tendências.   Maus tratos na infância e críticas excessivas que causam traumas, também poderão dar origem ao transtorno narcisista, dizem os especialistas. Isso não significa que  todas as pessoas que sofrem maus tratos na infância se tornem narcisistas, é preciso que a  pessoa  possua traço negativo de  caráter, para desenvolver  uma personalidade com  esse transtorno

Por fim, vale ressaltar que este artigo é somente uma abordagem superficial sobre o tema (pois não sou psicóloga nem psicanalista)  e visa somente chamar a atenção para um ponto tão pouco explorado na psicologia forense.

Para aqueles que gostariam de saber mais sobre esse transtorno, recomendo os filmes "Garota Exemplar" e "Grandes Olhos", os quais retratam através dos seus personagens o Transtorno de Personalidade Narcisista. Confira nos trailers a seguir:
                                                       







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