Durante o período que exerci jurisdição em Varas de Família, tive a oportunidade de tomar conhecimento dos vários tipos de relacionamentos familiares disfuncionais, os quais eram muitas vezes noticiados nos processos de Divórcio e Dissolução de União Estável. Em muitos deles, alguma das partes, cônjuge ou companheiro, apresentava comportamento com características de personalidade narcisista e nesses casos o rompimento da relação era sempre traumático. Também era frequente a parte que tinha esse distúrbio usar os filhos como peças de barganha no fim do relacionamento. Por isso, muitas vezes havia a necessidade de um laudo psicossocial, quado o processo era encaminhado ao setor do Núcleo de Assessoria Psicossocial das Varas de Família ( NUAPSSOCIAL), onde um laudo era elaborado para nortear as decisões proferidas nos autos.
Lembro de um caso de dissolução de união estável onde a parte autora alegava que conviveu por mais de dez anos com o ex-companheiro (eles já estavam separados quando a ação foi ajuizada) e somente decorrido esse tempo ela descobriu que ele era portador de TPN (transtorno de personalidade narcisista), quando em decorrência dos abusos sofridos nesse relacionamento, teve de fazer psicoterapia e soube através do seu psicoterapeuta que o ex-companheiro tinha comportamento com características desse distúrbio de personalidade.
Nesse caso ela teve de buscar uma medida protetiva no Juízo de Violência Doméstica, pois quando decidiu por fim ao relacionamento abusivo passou a ser vítima de "stalking" (perseguição reiterada a alguém) praticado pelo ex-companheiro, que não aceitava ser rejeitado. No processo eram noticiados os abusos sofridos pela requerente, cujo relacionamento deixou-a bastante traumatizada, passando a ter ansiedade e até depressão.
Percebendo que isso ocorria em vários processos, procurei pesquisar sobre esse transtorno e descobri que ele é mais comum do que eu imaginava, no entanto não é muito estudado na psicologia, somente nos últimos anos vem chamando mais a atenção dos psicoterapeutas.
A psicanálise tem a mitologia como fonte de inspiração no estudo da psique humana, tendo o mito como modelo na busca para a compreensão dos processos inconscientes. Portanto o arquétipo da personalidade narcisista é abordado na mitologia grega. Diz o mito que Narciso era um jovem caçador muito bonito. Um certo dia, ao se debruçar sobre um lago e ver a sua aparência pela primeira vez, ele ficou apaixonado pela própria imagem. Então passou a observar com muita frequência a imagem refletida na água, admirando a sua beleza sem saber que se tratava dele mesmo. Até que um certo dia tentou tocar na imagem, quando caiu no rio e morreu afogado.
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Narciso ( pintura de Caravaggio ) |
O Transtorno de Personalidade Narcisista é uma desordem de personalidade. A preocupação em ser grandioso, o exibicionismo, sentimento de indiferença em relação ao outro, a ausência de empatia e a incapacidade de se relacionar de forma satisfatória, são aspectos que definem o narcisismo, segundo Anna Karynne Melo, psicóloga, psicoterapeuta e professora da Universidade de Fortaleza. Ela esclarece: “O narcisismo é um transtorno que está no nível de desorganização da personalidade, que significa dizer que as funções do próprio eu estão comprometidas, ou seja, as funções de auto-observação”.
Pesquisando sobre o assunto, descobri algumas das características do narcisista e do relacionamento com uma pessoa com esse transtorno, que listo a seguir:
- Intensa auto concentração de si mesmo e ego inflado, com intesidade também na autopromoção, arrogância, falta de empatia;
- Busca incansável pelas próprias necessidades sem se preocupar com o outro;
- Aparente elevada autoestima, no entanto é somente aparência, pois na realidade há muita insegurança, no fundo sente que é uma pessoa desprezível e por isso vive um falso eu ou "alter ego";
- Dependência de afeto e validação de seus atos pelo outro (para manter o sentido de si mesmo) e, ao mesmo tempo, não se preocupa com a necessidade do outro;
- Sensação de direito e exigência de admiração constante e excessiva;
- Exagero em falar sobre suas conquistas e talentos;
- Intolerância a críticas, não aceitando nenhum tipo, nem a crítica construtiva;
- Dificuldade em pedir desculpas, sempre acha que está certo em tudo;
- Julga-se merecedor de todo tipo de elogios, acha-se especial;
- Prazer em depreciar e criticar a pessoa que lhe fornece suprimento emocional, podendo tornar-se um vampiro de emoções;
- Ausência de consciência e falha de caráter, podendo ser explorador financeiro da vítima do abuso, pois entende que a pessoa tem de retribuir/pagar por se relacionar com uma pessoa tão especial quanto ele(a);
- Enorme capacidade de manipulação, pois geralmente os narcisistas são charmosos, inteligentes e encantadores, usando seu poder pessoal para envolver e manipular o outro;
- Procura realizar-se nos filhos, tendo estes como extensão dele(a), mostrando-os como um troféu a ser exibido;
- Geralmente procura relacionamentos com pessoas que possibilite sua validação, gerando status e padrão social;
- Tem necessidade de retratar os fatos conforme sua visão narcisista, onde muitas vezes utiliza mentiras para camuflar a verdade, numa visão distorcida da realidade;
- Vê o outro como um objeto e não como uma pessoa, onde o relacionamento é considerado como uma "caçada", no qual o narcisista é o predador ;
- Não aceita ser desobedecido, exercendo um controle excessivo sobre o outro;
- Quando percebe que está perdendo o controle e não mais consegue manipular o outro, sente muita raiva e pode tornar-se agressivo, com ofensas verbais, podendo também cometer agressão física.
O narcisismo, assim como o autismo, apresenta-se em espectro, portanto há níveis de narcisismo e os tipos mais comuns são assim delineados:
O narcisismo grandioso, onde a pessoa é extrovertida, exibicionista, arrogante, com enorme senso de superioridade, aparentando ser confiante e feliz (mas é só aparência, no fundo é inseguro e precisa de constante validação ).
O narcisismo vulnerável, no qual o portador costuma ser tímido, ansioso, tendência a baixa auto-estima e ao vitimismo, no entanto usa isso para manipular e explorar o outro, buscando atenção constante e validação, com exagerado egocentrismo.
Há ainda o narcisismo patológico, o tipo mais grave que beira a psicopatia, no qual a pessoa é altamente manipuladora, super arrogante, inflama suas conquistas fantasiando seu sucesso; costuma exigir atenção e admiração excessivas, falta de empatia nas interações sociais e exploração do outro, inveja do sucesso alheio.
Existe também o tipo intermediário entre o narcisismo grandioso e o patológico, quando a pessoa no decorrer da sua existência, com a idade mais avançada, vai acentuando os traços e características narcisistas.
No entanto, apresentar alguns dos traços narcísicos não significa que uma pessoa tenha o transtorno, pois algumas das características do narcisismo estão presentes em todos nós, o que significa que em algum momento podemos ser egoístas, buscamos as nossas necessidades em primeiro plano e não conseguimos ficar atentos às necessidades do outro. Diferente disso, o transtorno é um conjunto de características disfuncionais que não depende de um contexto específico, ou de um momento, é um modo constante de funcionamento da personalidade do indivíduo.
Dizem os especialistas que o narcisismo é um transtorno que não tem cura e pode até ficar mais acentuado na velhice. No entanto o narcisista pode buscar tratamento ao ser diagnosticado, para aprender a lidar com seus gatilhos emocionais e a partir disso procurar ter relações mais saudáveis e menos abusivas, sem causar tanto sofrimento ao outro.
Porém, dizem os estudiosos no assunto, que o(a) narcisista dificilmente irá se identificar como uma pessoa com traços narcisistas. Ou seja, ele ou ela jamais irá admitir, salvo raras exceções, que possui esse transtorno de personalidade, pois quase sempre suas aspirações são desmedidas. Para a pessoa narcisista é normal e merecedor que seja o centro das atenções e faz tudo para isso. Para essa pessoa é ridículo tentar identificar-se como sendo narcisista por ser como é, pois se acha especial e merecedor(a) de todos os elogios, aplausos e bajulações.
Diante disso, relacionamentos com narcisistas são muito traumáticos, pois eles são ególatras, não são empáticos, pouco se ocupam com o outro e sempre estão preocupados com aquilo que é importante para eles mesmos. Assim, para lidar com o narcisista é preciso ser muito empático e deixar claro a individualidade que cada um dos envolvidos tem, bem como impor limites. Conviver com alguém que tenha esse distúrbio de personalidade envolve muito cuidado e enorme sacrifício, pois o(a) narcisista se coloca como a pessoa mais importante da relação, exigindo que o outro sempre esteja ao seu dispor.
Os estudiosos também enfatizam que o narcisista não se apresenta com suas caracterísitcas de personalidade disfuncional para todos, elegendo suas "vítimas", as quais lhes dão o suprimento emocional que necessitam. Portanto, com as pessoas em geral os narcisistas não demonstram seu transtorno de personalidade, posto que possuem um "alter ego", usam máscaras nas relações sociais e podem até demonstrar simpatia, pois geralmente são pessoas muito inteligentes e encantadoras.
As "vítimas" em potencial dos narcisitas, ou seja, as pessoas que podem lhes fornecer suprimento emocional, geralmente são sensíveis, empáticas e carentes, apresentando dependência emocional. Por isso também necessitam de ajuda através de psicoterapia para vencer essa fragilidade emocional.
Dizem ainda os estudiosos, que o narcisista quase sempre tem mais de uma pessoa para suprimento emocional, por isso a tendência de triangulação nos seus relacionamentos amorosos. Ele (ou ela) pode descartar e colocar a vítima em "stand by" por algum tempo, porém voltando ao ciclo de abuso quando sente necessidade, convencendo a vítima a retornar a relação. Isso pode perdurar por muitos anos, com idas e vindas, pois o(a) narcisista quase sempre coloca a vítima em sua " prateleira" de suprimento quando faz o "descarte" e passa a buscar suprimento em outra pessoa. No entanto o descarte não significa que desistiu, a relação fica apenas suspensa, podendo ser reiniciada posteriormente, gerando um círculo vicioso.
Em outra situação, quando é descartado(a) pela vítima que chega ao limite do abuso, o/a narcisista nunca acredita no rompimento definitivo do relacionamento, pois se considera insubstituível, ocasião em que espera a oportunidade certa para novamente retornar a relação, quando o ciclo de abuso reinicia cada vez com mais intensidade. Por isso é tão difícil o rompimento, quando a relação já se tornou tão tóxica ao ponto da vítima ficar emocionalmente dependente, necessitando de psicoterapia para a cura dessa dependência emocional.
Não há um consenso entre os estudiosos sobre como é criada a personalidade narcisista, sabendo-se apenas que esse distúrbio de personalidade disfuncional tem origem na infância, quando a personalidade da criança está sendo formada. Ou na adolescência, quando já formada a personalidade, porém o adolescente permanece com traços infantis por algum trauma, com personalidade mal formada.
Falta de limites na educação, com excessiva permissividade dos pais e elogios exagerados aos filhos, podem causar esse transtorno, caso exista uma tendência hereditária. Portanto é um somatório do meio e das tendências. Maus tratos na infância e críticas excessivas que causam traumas, também poderão dar origem ao transtorno narcisista, dizem os especialistas. Isso não significa que todas as pessoas que sofrem maus tratos na infância se tornem narcisistas, é preciso que a pessoa possua traço negativo de caráter, para desenvolver uma personalidade com esse transtorno.
Por fim, vale ressaltar que este artigo é somente uma abordagem superficial sobre o tema (pois não sou psicóloga nem psicanalista) e visa somente chamar a atenção para um ponto tão pouco explorado na psicologia forense.
Para aqueles que gostariam de saber mais sobre esse transtorno, recomendo os filmes "Garota Exemplar" e "Grandes Olhos", os quais retratam através dos seus personagens o Transtorno de Personalidade Narcisista. Confira nos trailers a seguir:
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