quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O direito de sonhar ...



No post  anterior  coloquei o link de  um  vídeo  onde  Eduardo Galeano  declama  um texto de sua  autoria, publicado no Diário Argentino , em 1997.  Sempre  fico  emocionada  quando revejo o  vídeo . Fui  ao pai/mãe Google  e  encontrei o  texto   traduzido . Colei  aqui  para puro  deleite  daqueles que  ainda  se permitem  sonhar ...

"Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede. Deliremos, pois, por um instante. O mundo, que hoje está de pernas para o ar, vai ter de novo os pés no chão.

Nas ruas e avenidas, carros vão ser atropelados por cachorros.

O ar será puro, sem o veneno dos canos de descarga, e vai existir apenas a contaminação que emana dos medos humanos e das humanas paixões.

O povo não será guiado pelos carros, nem programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de passar ou uma máquina de lavar roupas.

Vamos trabalhar para viver, em vez de viver para trabalhar.

Em nenhum país do mundo os jovens vão ser presos por contestar o serviço militar. Serão encarcerados apenas os quiserem se alistar.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas.

Os cozinheiros não vão mais acreditar que as lagostas gostam de ser servidas vivas.

Os historiadores não vão mais acreditar que os países gostem de ser invadidos.

Os políticos não vão mais acreditar que os pobres gostem de encher a barriga de promessas.

O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza. E a indústria militar não vai ter outra saída senão declarar falência, para sempre.

Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de indigestão.

Os meninos de rua não vão ser tratados como se fossem lixo, porque não vão existir meninos de rua. Os meninos ricos não vão ser tratados como se fossem dinheiro, porque não vão existir meninos ricos.

A educação não vai ser um privilégio de quem pode pagar por ela.

Justiça e liberdade, gêmeas siamesas condenadas a viver separadas, vão estar de novo unidas, bem juntinhas, ombro a ombro.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio vão virar exemplo de sanidade mental, porque se negaram a esquecer, em tempos de amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja vai corrigir alguns erros das Tábuas de Moisés. O sexto mandamento vai ordenar: "Festejarás o corpo". E o nono, que desconfia do desejo, vai declará-lo sacro. A Igreja vai ditar ainda um décimo-primeiro mandamento, do qual o Senhor se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte". Todos os penitentes vão virar celebrantes, e não vai haver noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro".
Eduardo Galeano  é jornalista e escritor uruguaio. O texto foi publicado no diário argentino Página 12, em 29 de outubro de 1997, com o título "El derecho de soñar".

sábado, 22 de outubro de 2011

Modelos de magistratura e humanização da justiça



Nesses  dias  andei refletindo  sobre o modelo ideal de magistrado e  peguei  algumas "antiguidades"  para reler , como Direito e Utopia ( João Batista Herkenhoff ) e a Dimensão da Magistratura ( Luiz Flávio Gomes ) . 

Segundo o  Prof. Luiz Flávio, pelo menos  três modelos de magistratura  são delineados : o empírico-primitivo, o  técnico-burocrático e  o democrático . Os dois primeiros  são modelos  de  características  bem marcantes e  estão em fase de  acabamento. O modelo democrático está sempre em construção .

O modelo primitivo  está praticamente em desuso : inexistência de  concurso público; nepotismo , escolha acentuadamente política ; juiz asséptico, neutro, nada politizado, não possui independência para dirimir o conflito  conforme sua  consciência e o direito; subordinação ferrenha, tanto administrativa, quanto jurisdicional ;  submissão aos órgãos superiores, inclusive  no que se  relaciona  com a interpretação das leis .

O modelo técnico-burocrático tem na magistratura  técnica  seu foco e  sua estrutura é  demasiadamente  burocrática e hierarquizada . Neste modelo os juízes  já são selecionados por concurso público , mas há muito  formalismo e pouca sensibilidade com as desigualdades  sociais ; rígido positivismo legalista ( aplicação da lei  literal, sem atentar para as peculiaridades do caso concreto ); juiz  também asséptico, neutro, legalista , ao mesmo tempo em que é  exageradamente " carreirista". Possui independência mais  formal que  substancial, mais  externa que interna ; alto apego à  jurisprudência , submissão administrativa aos superiores hierárquicos ;  juiz  com acentuada  tendência silogística  ( a lei  como premissa maior, o fato como premissa menor e  a sentença como  conclusão  ) e por isso mesmo  subserviente  aos  autoritarismos legais .

O modelo democrático contemporâneo tem  a mesma seleção  através de  concurso público . Neste  modelo já não há  tanto  formalismo  como o modelo técnico-burocrático . O juiz  é  engajado eticamente , conhecedor do direito internacional , particularmente dos direitos humanos .  Há  nítida preocupação  com a  tutela dos  direitos  fundamentais ; há autodeterminação e  independência   do juiz  como base da sua  dignidade .  Este modelo  tem  como  base jurídica fundamental  os primeiros artigos da  nossa CF . Como valores  fudamentais que devem nortear a interpretação das leis , vale enfatizar a  liberdade, a solidariedade ( art. 3º ), a  democracia ( art.1º) , a  igualdade ( art. 5º) e a  dignidade da pessoa  humana .

O modelo  técnico-burocrático   tem   nitidamente  características   consideradas   do aspecto masculino do Ser ( yang )  : formalismo , pouca sensibilidade, tecnicismo . Enquanto no modelo democrático  há  aspectos  femininos do Ser (Yin)  :  liberdade, solidariedade , sensibilidade .  O modelo  democrático é o    contemporâneo, apesar de ainda existir  vestígios dos demais  modelos, na magistratura contemporânea . Mas existe um modelo emergente  que  vai além da magistratura democrática . É a  magistratura  humanizada.  E os  Juizados  Especiais , que  são  norteados  pelos princípios  da  simplicidade,   informalidade , oralidade e razoabilidade ,  são os  verdadeiros precursores  desse  modelo humanizado de  magistratura .  Sobre a  necessária  humanização da justiça  o juiz  federal Bruno Augusto  escreveu  um  excelente  artigo  O Paradoxo do Juiz e a Necessária Humanização da Justiça .  

Conheço alguns magistratados  com esse perfil de juiz humanista , que  vai além do juiz  democrata . Um deles é o juiz  David Diniz Dantas,  que  inova   com  decisões  baseadas  nas  condições  sociais , não  apenas  com o que  diz  o  texto da lei . Outro exemplo de magistrado  humanista   é o juiz  Gerivaldo Neiva .

Qual o melhor  modelo de  magistratura ? A resposta  é  simples . O  melhor  modelo  é o  da magistratura  humanizada , menos formal , simplificada, solidária , desburocratizada,  independente, ética  . E como chegar a esse modelo ideal ? Talvez  ainda  seja uma  utopia esse  modelo de magistratura. Mas a utopia não significa algo impossível de se  alcançar. Eduardo Galeano  disse  uma  certa  vez que a utopia serve para nos fazer  caminhar  até  ela  ( clique  aqui  e  veja o  vídeo ) .

Portanto ,  colegas  magistrados , caminhemos  juntos, solidários, rumo à  magistratura humanitária .



ooOoo